Os primeiros hominídeos surgiram na Terra entre três e um milhão de anos atrás, mas o espécime do que se convencionou chamar de h...

A poesia como a primeira manifestação de fala do humano

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Os primeiros hominídeos surgiram na Terra entre três e um milhão de anos atrás, mas o espécime do que se convencionou chamar de homem moderno data de 200 a 400 mil anos atrás, com os Neanderthalis (extintos há 30 mil anos) e outras espécies.
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Homem de NeanderthalSpanish Sch., 1883
Para a antropologia, o homem verdadeiramente inteligente, o Homo Sapiens, tal como a ciência identifica atualmente, teria surgido entre 40 e 50 mil anos.

Presume-se que o homem tenha começado a falar — ou emitir sons minimamente articulados — há 80 mil anos. As primeiras linguagens constituíram-se formalmente há pouco mais de quatro mil anos.

O filólogo suíço Frederick Bodmer pontuou em seu livro O homem e as línguas – guia para o estudioso de idiomas:

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Nada conhecemos acerca da fala humana no período em que um antropóide ereto pela primeira vez fez o uso de sons, para cooperar no trabalho ou na defesa, até a época em que se começou a escrever... Podemos dizer com certeza que o homem primitivo empregava muitos gestos para transmitir aquilo que desejava dizer.
BODMER, 1970

Há uma vertigem do tempo na história da fala que se desenrola por milhares de anos. Mas o fato é que a fala, a partir dos primeiros sons, evoluiu para a formatação de uma linguagem com um mínimo de identidade e — podemos dizer — regras que, obviamente, não surgiram por geração espontânea, mas talvez movida por um processo de tentativa e erro. Certamente, a necessidade de comerciar experiências e mercadorias levou ao aperfeiçoamento desse mecanismo nas primeiras línguas.

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Paleoart
Interessantes são as conclusões a que chegou o físico Leonard Mlodinov, em O andar do bêbado (2008), quando postula que os processos que estabelecem a evolução e presidem os fatos de nossa vida estão vinculados a um aspecto aleatório, mas firmemente associados ao número de tentativas. Ou seja, quanto mais vezes o homem primitivo tentou se exprimir pela fala, mas ele aperfeiçoa (e ainda segue aperfeiçoando) sua capacidade de traduzir com maior precisão sobre o que narra, o que sente e o que faz sentir.

Mas, uma indagação se impõe: quais terão verdadeiramente sido as primeiras palavras pronunciadas pelo homem primitivo no surgimento da fala? Ou, talvez melhor, o que o homem primitivo quis dizer quando usou a fala pela primeira vez?
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A. Lonati, S.XIX
É aceitável que a primeira comunicação entre os homens primitivos se manifestou através de gestos. Sim, porque os gestos estão mais acessíveis. Gestos com as mãos são praticamente instintivos. Até com meneios do corpo.

Em algum momento, com certeza, o homem usou a fala, seja para reforçar os gestos, seja por ter descoberto, de alguma forma, um instrumento infinitamente mais versátil para se comunicar, com o uso de sons. Ele poderia agregar sons aos gestos para narrar uma caçada, por exemplo. Ou o encontro com outros homens até então desconhecidos, já que essas comunicações iniciais certamente se deram entre os membros de uma mesma família.

Assim, com gestos, os homens podiam indicar algumas necessidades elementares, como a fome. Bastava apontar a comida. Ou a bebida. Ou talvez nem fosse necessário comunicar. Nesse sentido, os sons não seriam absolutamente imprescindíveis para externar essas necessidades. Os gestos resolveriam. Havia uma gama de possibilidades de gestos capaz de manifestar essas demandas mais básicas. Mas, como pronunciar um medo, por exemplo? Ou, de que forma poderia o homem primitivo comunicar um sentimento, apenas com o uso de gestos?

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Vasnetsov, S.XIX
Alguns pesquisadores entendem que um dos primeiros sentimentos dos homens primitivos terá sido a solidariedade. Há traços desse comportamento até mesmo entre os animais. Assim, se um homem encontrava outro de sua espécie ferido ou morto, certamente seria tocado por um sentimento de solidariedade. E apenas com gestos não seriam capazes de externar o que aflorava em seus sentidos. Os gestos teriam apenas o objeto de sinalizar, mas não externar questões da ordem de sua sensibilidade perante um semelhante.

A solidariedade como elemento nascido de alguns dos instintos humanos mais básicos relacionados à necessidade de sobrevivência, desejo sexual, competição, agressão, e talvez associada a alguma necessidade
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C. Knight, S.XX
algo ainda incompreensível para aqueles homens, algo da ordem do divino. Algo que, obviamente, apenas os gestos não tinham a capacidade de traduzir. Os gestos permitiam uma comunicação rudimentar, e atendia às primeiras necessidades, mas certamente não cumpriam o papel de aproximar os homens, numa liga mais forte relacionada aos sentimentos.

Além do mais, os gestos não apresentam por si a capacidade de aproximar os homens. Talvez até mesmo de afastar. Para satisfazer suas necessidades básicas, como comer ou beber, o homem primitivo certamente não precisava do outro. Mas, não poderia falar com outro à distância. Então, é presumível que, diferente dos gestos, a fala foi um fator de aproximação e socialização maior do homem, num ambiente ainda caótico do ponto de vista dos afetos.

O que nos leva diretamente ao que propunha Jean-Jacques Rousseau, em “Ensaio sobre a origem das línguas” quando postulou:

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A linguagem dos primeiros homens como línguas de geômetras e vemos que foram línguas de poetas... Os primeiros motivos que fizeram falar o homem foram paixões, suas primeiras expressões foram tropo. A linguagem figurada foi a primeira a nascer, o sentido próprio foi o último a ser encontrado.
ROUSSEAU, 2010

Parece aceitável imaginar que as primeiras falas eram articuladas de modo figurado. Ou seja, de alguma forma, elas traduziam o que o sentimento deveria representar. Ainda que não compreendessem o sentimento em si. O homem primitivo agia por solidariedade, é compreensível, mas não sabia o que era a solidariedade. As primeiras falas talvez tentassem, na verdade, representar o que os sentidos experimentam. Daí porque a língua tem que ser necessariamente figurada.

A considerar essa observação como verdadeira, devemos entender as primeiras falas como integrantes de uma linguagem figurada, tal como a linguagem dos poetas. Uma língua constituída basicamente para externar sentimentos, ou paixões,
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C. Knight, S.XX
como fala JJ Rousseau (2010). O que não deixa de ser surpreendente, na medida em que o senso comum parece sinalizar que o surgimento da língua tenha sido para atender a uma demanda particular para manifestação de necessidades aos parceiros. Entretanto, a lógica parece trilhar outra direção de pensamento.

Teríamos, então, uma comunicação que se dava através de gestos, para relatar alguns fatos do cotidiano de suas vidas, associada a uma comunicação por fala, que agregava sentido às histórias, capaz de atingir mais fundo nos interlocutores. Não apenas relatam uma história, mas acrescentavam uma espécie de interpretação poética dos acontecimentos, explorando um terreno, à época, ainda não prospectado dos sentires, em seus diversos matizes.

É possível imaginar então que o homem primitivo começou a se compreender a partir da compreensão dos seus sentimentos, traduzidos pela fala figurativa, associada ou não a narrativas, mas capazes de emprestar um sentido aos acontecimentos, além de contextualizar o humano perante o mundo. Assim, a fala, com sentido poético — aí entendido como aquelas palavras que atingem os pontos mais abissais do homem primitivo —, terá sido o despertar da compreensão do homem de sua aventura na Terra, em face do outro e de algo superior, que certamente levou à curiosidade em relação ao divino.

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C. Knight, S.XX
Compreender sua interrelação com os demais, com os animais, plantas, com a Terra e, finalmente, com o divino que, para ele, deveria permear a tudo, senão o mundo perderia as suas explicações mais imprescindíveis ao aperfeiçoamento da própria espécie, certamente como um imperativo da seleção natural. E, neste sentido, a fala surge, muito provavelmente, como uma importante vantagem evolutiva.

Seria possível admitir a evolução humana, tal qual postulou Charles Darwin, em Origem das Espécies (2004), sem o concurso da fala? Para Darwin, “todos os seres vivos estão lutando,
A fala, com sentido poético, terá sido o despertar da compreensão do homem de sua aventura na Terra, em face do outro e de algo superior, que certamente levou à curiosidade em relação ao divino.
por assim dizer, para se apoderar de cada lugar na economia da natureza” (Pág 165). Essa luta certamente não seria possível sem o concurso da fala, ou ainda mais fundo, sem o advento da língua figurada dos poetas, capazes de traduzir não apenas os fatos, mas também e especialmente a alma do homem, sua capacidade de compreender o passado e projetar o futuro. Ou seja, o homem como protagonista de sua História.

Para Santo Agostinho, em Confissões (2014), era no seu mais íntimo ser que o homem certamente encontraria a resposta para suas inquietações, onde se poderia entender a si próprio também, naquilo que poderia compreender. “Há, porém, coisas no homem que nem sequer o espírito que nele habita conhece”. Santo Agostinho põe, obviamente, o homem como elemento de segunda grandeza, imediatamente abaixo do divino, ou do Criador.

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Cerimônia NeolíticaJ. Dobie, 1985
Oportuno observar ainda a importância que Lacan (1998) sempre deu à fala, como elemento de conhecimento do mundo e de si próprio. Para Lacan, é a palavra que o real significante e que dá existência às coisas, e permite, não apenas a conscientização do homem perante o mundo, como a essência do autoconhecimento, e o capacita a entender a subjetividade da vida, o importante é que saber-se integrante de um sistema holístico, mas o saber sobre os seus atos, e, claro, sobre sua História.

Anefo, CC3 NL
Nesse particular aspecto sobre a importância da fala, ou da palavra, vale a pena considerar o que advogou Elias Canetti, em seu livro A consciência das palavras (2011) quando retrata o curioso caso de um poeta anônimo, revelando toda a sua amargura quanto ao sentido de ser poeta. Ele diz com amargura que “fosse eu realmente um poeta, teria necessariamente podido impedir a guerra”.

O poeta que externa sentimentos e, tanto quanto o homem primitivo ao descobrir a fala (figurada, no caso), entendia que a magia das palavras, por tratar de paixões, poderia alterar o curso de suas vidas. As palavras como elemento de magia da existência.

Canetti, na tentativa de tentar compreender a química secreta das palavras e especialmente compreender o que de fato vem a ser um poeta, também escreveu, a propósito do autor anônimo, angustiado por não poder realmente evitar uma guerra apenas com a força de seus versos:

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Ora, se as palavras tanto podem, porque não se haveria de poder impedir com elas a guerra? Não é absolutamente de espantar que alguém mais que mais do que os outros lida com elas esperasse também mais de sua eficiência do que os outros.
CANETTI, 2011

É também notável o que escreveu Alberto Manguel, em seu livro “Uma história da leitura”, a respeito de uma lenda em torno do Sefer Yerizah, texto hebraico (século VI), que postula a criação do mundo a partir de 32 caminhos secretos, que seria os dez algarismos e as 22 letras, a partir dos quais tudo o mais foi criado no mundo, e cita:

As três camadas do cosmo – o mundo, o tempo e o corpo humano... A chave para compreender o universo está em nossa capacidade de lê-los (os 32 caminhos secretos) adequadamente e dominar suas combinações.
MANGUEL, 1997
Fronteiras do Pensamento
E então, para demonstrar a força das palavras, o autor narra, de forma impressionante, sobre os livros da época que abordavam os primórdios da criação, para demonstrar como dar vida a alguma parte, numa imitação da potência do Criador:

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Segundo uma lenda do século IX, Hanani e Hoshaiah, profundos conhecedores do Talmude, estudavam uma vez por semana o Sefer Yerizah e, mediante a combinação correta das letras, criavam um bezerro de três anos que então comiam no jantar.
MANGUEL, 1997

E vemos, por fim, a importância da primeira fala, ou da manifestação figurativa ou poética em última instância, como a distinção mais arcaica da história da língua, como elemento intrínseco e inseparável da História do homem. O que remete a Aristóteles, em Poética:

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A obra do poeta não consiste (apenas) em contar o que aconteceu, mas, sim, quais coisas podiam acontecer, possíveis do ponto de vista da verossimilhança ou da necessidade.”
ARISTÓTELES, 2014

E aqui necessidade ganha o contorno mais forte, como uma adequação à vantagem evolutiva que o homem adquiriu com o uso da fala, seu instrumento mais importante diante da perplexidade de sua aventura na Terra.

A origem da língua remete diretamente à necessidade que o homem primitivo tinha para estabelecer laços sociais, através de suas comunicações, que compreendiam suas necessidades mais elementares, mas também outros elementos agregadores como a expressão de suas narrativas, ideias e, especialmente, seus sentimentos, apesar de, certamente, ainda não terem consciência do que seria o ato do sentir.

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English Sch,S.XIX
Mas, observações a partir dos estudos de grandes pesquisadores, filólogos e antropólogos, parecem sinalizar que as primeiras comunicações do homem primitivo não se davam pela fala, mas por gestos, porque para atender necessidades básicas, comer ou beber, não se exigia uma comunicação mais complexa, que veio com a fala. É possível especular que os gestos não promoviam, necessariamente, a aproximação entre os homens. Não do ponto de vista mais afetivo. É mais compreensível aceitar que a fala,
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P. Jackson, S.XX
sim, por oferecer códigos modais mais intrinsecamente humanos.

A fala teria surgido, no momento seguinte, para exprimir os sentimentos. Assim sendo, essa língua teria que ser necessariamente figurativa ou, em última instância, uma língua poética. E, muito provavelmente, foi a partir dessa língua poética que os povos primitivos puderam apresentar suas narrativas e ideias, agregando elementos de compressão do mundo, de si próprio e de uma consciência do sagrado e do intrinsecamente divino.

Uma vantagem evolutiva determinante para a História do humano na Terra. O que nos leva a suspeitar que essa História tem origem na necessidade poética que o humano traz consigo, desde seus primórdios, como elemento intrínseco para o estabelecimento da compreensão, ou tentativa de compreensão de sua aventura humana.

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