A Mirabeau e Suely Dias
Encontrava-me em Braga, em pleno Sábado de Aleluia, quando, diante da Igreja de Santa Cruz, deparei-me com o dístico latino, insculpido em seu frontispício:
Vexilla Regis prodeunt
Fulget Crucis mysterium
Os estandartes do Rei avançam
Fulge o mistério da Cruz
Era o poeta Dante Alighieri dando as caras, na Bracăra Augusta, ao Norte de Portugal...O Nono Círculo do Inferno é o último, na Commedia de Dante. Igualmente aos dois anteriores, o Sétimo e o Oitavo, trata-se de um espaço mais complexo que os demais, vez que aumentam as penas e os condenados, à medida que os dois poetas, Dante e Virgílio, vão descendo ao ponto central da sua viagem pelo reino de Dite, “o imperador do doloroso reino” (Lo ‘mperador del doloroso regno, Canto XXIV, verso 28).
O Sétimo Círculo se divide em três níveis, onde se encontram os violentos contra o próximo (homicidas), os violentos contra si próprios (suicidas), os violentos contra Deus (blasfemos), os violentos contra a natureza (sodomitas) e os usurários, abrangendo um total de 6 Cantos, do XII ao XVII.
O Oitavo Círculo, por sua vez, denominado de Malebolge, o círculo das Maus Bolsões, é dividido em dez fossos concêntricos, onde se pune uma miríade de fraudulentos, como os rufiões, sedutores, aduladores, simoníacos, adivinhos e magos, corruptos e malversadores dos bens públicos, hipócritas, ladrões, conselheiros fraudulentos, semeadores de discórdia, cismáticos, os falsários e os alquimistas. Dante dedica 16 Cantos ao Malebolge, do XVIII ao XXXI.
O Nono Círculo apresenta estrutura similar de complexidade, tendo em vista que se divide em 4 Zonas – Caína, Antenora, Ptolomeia e Judeca –, abrangendo os últimos 3 Cantos, do XXII ao XXIV. Nesse Círculo se punem, de maneira geral os traidores, divididos em traidores dos parentes, da pátria, dos hóspedes e dos benfeitores. É também aí que acontece o fim da jornada de Dante e Virgílio pelo Inferno, que dura exatamente 1 dia, da Sexta-Feira da Paixão, 8 de abril de 1300, ao Sábado de Aleluia, 09 de abril, no hemisfério Norte; ou do Sábado de Aleluia, 9 de abril, ao Domingo de Páscoa, 10 de abril, no hemisfério Sul, na configuração astronômica ptolomaica da época.
Quando computadas todas as subdivisões dos nove círculos, que acontecem a partir do sétimo, o Inferno compreende 23 locais de punição, um mais profundo do que outro, sem contar com o Vestíbulo (Canto III), onde estão os ignavos, aqueles que perderam o grande bem do intelecto, a verdade, como diz Virgílio a Dante: “Nós viemos ao local onde eu te disse/que verás as pessoas desventuradas/que perderam o bem do intelecto” (Noi siam venuti al loco ov’ i’ t’ho detto/che tu vedrai le genti dolorose/c’hanno perduto il ben de l’intelletto, versos 16-18).
As almas condenadas embarcando para cruzar o Acheron Na Judeca, a Quarta Zona do Nono Círculo e o último espaço de todo o Inferno, dá-se o encontro de Dante e Virgílio com Lúcifer ou Dite, também designado por Belzebu (Canto XXXIV, verso 127), o comandante supremo de toda a região, cujo tamanho descomunal permite que o bater de suas gigantescas asas de morcego congelem toda a região daquele círculo, inclusive o Cocito, o rio que o banha. É uma visão estarrecedora, a de Lúcifer, que se junta ao suplício dos vários condenados embaixo do gelo transparente, cujos corpos sombrios davam a impressão de pedaços de palha sob uma superfície de vidro (là dove l’ombre tutte eran coperte,/e transparien come festuca in vetro, versos 11 e 12).
Dante, que não esconde estar escrevendo um poema, revela o medo que sentiu ao pôr em versos metrificados a sua chegada à Judeca, diante da visão das sombras dos condenados sob o gelo do Cocito (e con paura il metto in metro, verso 10), sentindo ainda medo maior com a visão de Dite, aquele que “contra o seu criador alçou os olhos” (e contra ‘l suo fattore alzò le ciglia, verso 34). Trata-se de um encontro inevitável e, mais ainda, incontornável, tendo em vista que é ali que deve ocorrer o final da travessia. O verso Inicial do Canto XXXIV já adianta essa visão terrífica: Vexilla regis prodeunt inferni (“Os estandartes do rei do inferno avançam”).
No seu processo de construção, que envolve uma complexa rede de intertextualidade e transtextualidade, Dante se utiliza dos versos iniciais do “Hino à Cruz” – Vexilla Regis prodeunt/Fulget Crucis mysterium –, a que nos referimos acima, composto no século VI, pelo religioso Honório Clemente Fortunato, natural de Treviso, que foi bispo de Poitiers, poeta e autor do hino que rememora o mistério da morte de Cristo na cruz. O poeta florentino, contudo, inverte as proposições do religioso, ao retirar o genitivo crucis (da cruz) e colocar em seu lugar o genitivo inferni (do inferno), ignorando, igualmente, o fulgor do mistério que resplende do madeiro sagrado. Já não se trata da cruz como estandarte do rei Jesus, mas das asas de Lúcifer, como estandarte do rei do inferno. Essa inversão é uma das maravilhosas criações de Dante: a Cruz carrega Jesus morto, portando a vida, conforme diz o hino, libertando-nos da morte, com o fulgor da Sua luz divina; as asas de Lúcifer, aprisionado no gélido e sombrio inferno, só conduzem morte.
Dante e Virgílio precisam desse encontro, por mais estarrecedor que pareça ser. Quando Lúcifer é punido, ele cai diretamente do Céu no Inferno, ficando, dos quadris para baixo, congelado no Cocito, movimentando apenas a horripilante parte superior de seu corpo gigantesco de três caras e asas descomunais. Dante e Virgílio têm que usar os pelos do corpo da “criatura que teve o belo semblante” (la creatura ch’ebbe il bel sembiante, verso 18), para atingir o centro da terra, onde ocorrerá a inversão dos hemisférios. O objetivo é encontrar a montanha do Purgatório, cuja formação resultou do deslocamento da massa rochosa com a queda de Lúcifer, na região onde se pune eternamente o mal. Descer e subir pelo corpo de Lúcifer é a única saída do Inferno, cujo resultado traz uma visão inesperada: a troca de hemisfério fez Lúcifer ser visto com as pernas abertas para cima, com a parte superior enterrada no rio gelado, numa posição grotesca e ridícula, que contrasta com a visão aterrorizante de sua face ameaçadora, no hemisfério oposto.
A última experiência de Dante é, de fato, horripilante. Não só porque a descrição física de Lúcifer, que “se foi tão belo, como agora é feio” (S’el fu sì bel com’elli è ora brutto, verso 34), nos remete a uma síntese de dois monstros mitológicos, cada um com as suas três cabeças terríveis, Cérbero, o guardião do inferno, e Cila, moça punida pela sua beleza e transformada em monstro aterrador e devorador dos navegantes que fazem a travessia do Estreito de Messina. No caso de Lúcifer, ele apresenta duas faces laterais à face principal, utilizando-as tal qual Cila (Odisseia, Canto XII), para dilacerar os três principais condenados à Judeca – Judas Iscariotes, Bruto e Cássio –, todos traidores dos seus benfeitores, sendo ele mesmo, Lúcifer ou Dite, o traidor de Deus. Punem-se, portanto, as traições a Jesus e a Júlio César – que representam a Religião e o Estado –, do mesmo modo que a imobilidade de Lúcifer, destinado a punir infinitamente os que ali se encontram, é uma punição a si próprio, por ter traído o seu criador. Imobilidade inquietante nas sombras, pela etimologia de seu nome que indica uma mobilidade contínua – Lucĭfer, o que porta a luz.
Dante se supera nesse mais simbólico de todos os círculos, apresentando a traição como o maior dos crimes, a ponto de ela ser comandada pelo próprio Lúcifer, não sendo delegada a um bando de demônios, como se vê no Malebolge, os bolsões do Oitavo Círculo. É ainda mais rica a narrativa, com a descrição do encontro com Dite, quando Dante, conhecedor dos preceitos platônicos a respeito da beleza – “a verdadeira simplicidade do espírito concerta a bondade e a beleza” (República, Livro III, 400e) –, mostra-nos a transformação da beleza de corpo e da alma, quando Lúcifer era o anjo de luz, na bruteza da sua feiura física, que corresponde a uma alma igualmente feia e bruta, por conta da traição operada (versos 34-36):
Se ele foi tão belo como é agora feio,
e contra o seu criador alçou os olhos,
bem dele deve proceder todo o luto.
S’el fu sì bel com’elli è ora brutto,
e contra ‘l suo fatore alzò le ciglia,
bem dee da lui procedere ogne lutto.
Há muito o que se falar desse Canto XXXIV, mas fiquemos por aqui, mostrando a oposição que existe entre a traição/ingratidão, no último Círculo do Inferno, com relação ao Amor. As três partes da Commedia – Inferno, Purgatório e Paraíso – terminam sempre se referindo às estrelas. No Inferno, a travessia que coloca Dante em contato com o que de mais vil existe na alma humana leva-o a sair para rever as estrelas (E quindi uscimmo a riveder le stelle, verso 139), numa clara compreensão de que a visão do mal e a sua consequente punição nos conduzem a um patamar superior. No Purgatório, a travessia é de purgação, por já haver o poeta fugido do mal. As estrelas, então, aparecem como a confirmação da purificação, que o levará a ter a sua entrada aceita no Paraíso (puro e disposto a salire a le stelle, Canto XXXIII, verso 145); no Paraíso, temos a certeza de que o Amor é a única forma de redenção do homem, movendo-o ao perdão (Canto XXXIII, l’amor che move il sole e l’altre stelle, verso 146).
A visão inesperada, em Braga, só me reafirmou como Dante é grande.