Os pedagogos modernos, normalmente pouco conhecedores da norma culta e, portanto, contrários a ela, combatem os professores de português que ensinam gramática, sob a alegação de que estes estão oprimindo os alunos, ao impor-lhes um falar estranho em substituição ao seu próprio saber linguístico, e inibindo-lhes a criatividade ao exigir deles, nas redações, a “linguagem dos opressores”. Ora, não existe um saber das classes dominantes, mas apenas o saber, tout court, sem adjetivações. Quem sabe detém o poder porque sabe, não porque é apenas poderoso. É o saber que leva ao poder e não o poder que dita o saber.
Não existe, portanto, um “saber das classes dominantes”, mas apenas “o saber”.
Muitos grandes detentores do saber, na verdade, não chegaram a ser nem mesmo membros da elite econômica ou política de nenhum país. Manuel Bandeira morreu sem ter realizado o sonho da casa própria, e Ibrahim Sued foi um bem-sucedido colunista social, posto que todos conhecemos sua competência linguística na oralidade e na escrita.
Lula perdeu as eleições em 1989 para Fernando Collor, porque o eleitor desinformado acreditava no saber deste e na ignorância daquele, levando em conta apenas a superficialidade da performance linguística de ambos. Os erros do primeiro eram pretensamente observáveis de imediato, mas os do segundo, embora camuflados pela pose de intelectual, também ocorriam, em termos sintáticos, mesmo porque é difícil sustentar permanentemente um padrão ideal de linguagem num discurso improvisado ou na fala descontraída. Cito o caso desses dois políticos porque ilustram, embora de maneira pouco elegante, o fato incontestável de que o conhecimento da norma culta da língua é extremamente importante na ascensão social do falante. Ninguém seria eleito presidente se discursasse em comício na base dos “nóis foi” ou dos “entonces”.
Seria erro manifesto supor que o dialeto caipira poderia tornar-se o dialeto de prestígio no Brasil se um Jeca Tatu ou um Tiririca qualquer conseguisse chegar à presidência. O dialeto prestigioso, hoje, não é mais ditado pelo poder político, mas pela tradição cultural. Seria inconcebível um tratado de filosofia no dialeto sertanejo de Cornélio Pires. Como seria inconcebível um médico ou um diplomata que dissesse “nóis fumo e já vortemo”.
Também seria erro manifesto supor que um professor de português pretenda substituir o dialeto do aluno pelo dialeto prestigioso (na hipótese de os alunos falarem todos o mesmo dialeto chamado “dialeto do aluno”). Seria estupidez pensar que um professor pretenda fazer o aluno dizer sempre tmeses pronominais ou usar em casa a regência recomendada do verbo assistir ou do verbo custar. Há a necessidade de distinguir padrões reais (que são formas linguísticas usuais) dos padrões ideais (que são formas linguísticas adequadas à situação de maior formalidade). Exigir de um aluno padrões ideais na situação formal de uma redação está longe de significar a substituição do seu modo de falar por outro, artificial, pedante ou fossilizado. Afinal, o dialeto é uma forma de identificação do falante ao grupo a que pertence. Obrigá-lo a trocar o seu dialeto por outro é, efetivamente, violentá-lo no mais sagrado dos seus direitos: o de ser ele mesmo.
Carece, portanto, de fundamento a estúpida alegação de que um professor de gramática pretenda impor o dialeto prestigioso em substituição ao pretenso dialeto do aluno, ainda que este seja socialmente estigmatizado.
A norma culta está sendo desprezada nos cursos superiores e, em consequência, também nos outros níveis de ensino, porque há não apenas um preconceito contra a gramática, mas também, e sobretudo, um real desconhecimento do seu papel na aprendizagem e no manejo da língua e de seu valor como instrumento de ascensão social. Na verdade, os professores de português interpretam erroneamente, por ingenuidade, por ignorância ou por conveniência, os trabalhos de análise do discurso ou de produção de texto, em que a gramática é altamente responsabilizada pelo bloqueio à expressão criativa. É verdade que o policiamento linguístico impede a espontaneidade, mas não se pode atribuir à gramática o papel de vilão na incompetência comunicativa dos nossos estudantes. Não pode dizer nada quem não tem nada a dizer. Não pode escrever com clareza quem não sabe pensar com clareza. Culpar as regrinhas gramaticais pela incapacidade de expressão do educando é uma atitude cômoda demais e, em tudo e por tudo, antipedagógica. O exagero dessa postura é criminoso: chegou-se a abolir inteiramente a gramática até mesmo dos exames vestibulares, num incentivo claríssimo ao despreparo linguístico dos alunos de primeiro e de segundo graus. Em troca, exige-se interpretação de texto, como se apenas uma única interpretação imposta pela banca examinadora fosse possível num texto literário ou como se não fosse crime ainda maior tentar reduzir a uma única paráfrase denotativa aquilo que faz a riqueza de um texto literário: a multiplicidade de leituras possíveis.
Ninguém pode escrever bem sem conhecer a língua em que escreve. E ninguém pode conhecer bem a língua em que escreve se não estudar adequadamente as suas potencialidades, traduzidas no domínio de sua sintaxe e de sua morfologia.
A gramática interiorizada, que caracteriza a competência linguística do falante, não precisa, obviamente, ser ensinada. Mas, quando se escreve, a competência linguística é de outro nível, e a performance é ditada pela consciência linguística e não apenas pela intuição.
Para pensar na igreja, não é preciso pensar nos tijolos que a ergueram. Mas para construí-la, o que é mais difícil, nenhum tijolo pode ser desprezado. Pensemos, pois, na gramática como os tijolos de uma catedral.
Os professores de português que não ensinam gramática para escamotearem sua incompetência profissional precisam pensar melhor. Ou estudar a norma culta, que é o que melhor deveriam fazer. Ainda é tempo de evitar que a língua no Brasil se transforme no sabir monossilábico dos surfistas de Ipanema.