Ao final da leitura de um poema que nos falou à inteligência, pelas idéias ou pela concepção; ou que nos comoveu, por sua expressiv...

A poesia e o ovo de Colombo

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Ao final da leitura de um poema que nos falou à inteligência, pelas idéias ou pela concepção; ou que nos comoveu, por sua expressividade ou beleza verbal, é comum dizermos que já havíamos sentido ou percebido o que ali estava dito, apenas nunca nos ocorrera botar aquilo no papel com aquelas palavras (o equívoco está exatamente aí: “aquelas” palavras são apenas tudo!).

Se a nossa lírica, desde o trovadorismo, sempre teve um pé no cotidiano e, em alguns momentos mais, em outros menos, aproximou-se do sentimento do leitor mediano, do Modernismo em diante, a lírica passou a se utilizar, sem exceção, em larga escala, de todas as coisas miúdas do cotidiano, aproximando-se de corpo
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Carlos Drummond de Andrade
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Manuel Bandeira
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João Cabral de Melo Neto
inteiro do horizonte do leitor comum. Poetas como Drummond, Manuel Bandeira, João Cabral, para exemplificar com nomes consagrados, “tiram ouro do nariz”. Esses poetas conseguem surpreender no mais banal gesto, no mais corriqueiro acontecimento ou no mais inexpressivo objeto, uma beleza inaudita, uma verdadeira epifania. No entanto, tudo já estava ali, naquele objeto cotidiano, banal, automaticamente visto ou utilizado. Faltava o olhar de poeta: faltava desautomatizar o olhar, desutilizar o objeto. Uma pedra no meio do caminho, um frango degolado, um estuprador de galinhas; meninos carvoeiros, um homem catando algo para comer na lata de lixo, um camelô numa feira de arrabalde; uma aspirina, um urubu, as latrinas de um colégio... Surge o olhar do poeta, a sua capacidade de ver com palavras, de escolher e reunir palavras, e a coisa comum, que faz parte do mais rotineiro cotidiano, que estava ali, ao rés do chão, invisível, ganha visibilidade, ganha vida e vira... poesia!

Muitas vezes, todas as palavras do texto são coloquiais, transparentes para qualquer leitor, dispensam o uso do dicionário, mas o ordenamento que o poeta dá àquelas palavras comuns potencializa e aprofunda o sentido das mesmas, transformando as palavras comunitárias em palavras “justas”, adequadas, únicas, insubstituíveis naquele contexto.

Por outro lado, depois que a realidade comezinha vira poema e poesia, a coisa muda de figura. O texto poético é sempre tecido com tão enovelados efeitos e sentidos que qualquer tentativa conceitual que busca apreender sua totalidade é sempre limitada. Procurando o poético no poema, tentamos desfazer alguns dos nós da elaborada trama, mas perdemos a trama em si mesma, e a reintegração dos fios de sentido que buscamos alcançar é, quando bem-fadada, apenas um possível textual – uma rede de novos nós, quase sempre mal-alinhavados.

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Toda nossa teoria, todo nosso esforço analítico, toda nossa empreitada interpretativa não passam de uma mecânica dos fluidos, pois a poesia é o mais fluido dos corpos. O poético está lá no poema, mas parece estar sempre brincando de esconde-esconde. Nós, caçadores do poético, somos um Midas pelo avesso: todo o ouro, que é o poético, no contato com o nosso gesto de vasculhar o poema num esforço analítico-interpretativo vira barro – mas há que tentar, pois a escolha é entre a certeza da dúvida ou o vácuo.

Mallarmé disse que um poema não se fazia com idéias, mas com palavras. Claro que um poema se faz com palavras e com idéias, mas é o ordenamento dessas
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Mallarmé P. A. Renoir
idéias plasmado num conjunto adequado de palavras que certamente faz brotar o poético. É aquela velha história da projeção do eixo paradigmático sobre o eixo sintagmático.

Todo mundo já viu alguém, após a fruição de uma obra de arte aparentemente simples, dizer: “Dessa daí até eu faço!” Isso nos leva à história do ovo de Colombo.

Conta uma anedota antiga que Cristóvão Colombo, já velho e pobre, costumava beber um copo de vinho ordinário na taberna de um antigo conhecido, todas as tardes. Certa vez, um idiota aproxima-se dele e diz que descobrir a América era coisa sem mérito, que qualquer um descobriria – era só entrar na caravela e deixá-la ir na direção do vento. Colombo concordou, mas fez um desafio ao parvo e insensível interlocutor: pegou um ovo cru com o taberneiro e propôs ao paspalhão que pusesse o ovo de pé. Após inúmeras tentativas vãs, o pateta desistiu, e, aborrecido, disse: “Bote você!” Colombo então, serenamente, quebrou a extremidade do ovo e, facilmente, colocou-o de pé. O pacóvio, então, disse: “Ah! Quebrando o ovo, eu também boto!” Ao que Colombo retrucou: “Mas por que você não teve essa idéia?”.

A poesia seria algo assim: está à vista de qualquer um, mas não se entrega a qualquer olhar; é preciso um olhar especial para poder percebê-la e, principalmente, apreendê-la num conjunto adequado de palavras. Tudo muito simples depois de feito, mas antes...

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