Saí da Praça São Pedro, pela Via da Conciliação ( Via della Conciliazione ), para fazer o lungotevere , o caminho ao longo do rio Tib...

Via di Ripetta, a Roma Augusta

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Saí da Praça São Pedro, pela Via da Conciliação (Via della Conciliazione), para fazer o lungotevere, o caminho ao longo do rio Tibre, em direção ao Mausoléu de Otávio Augusto César, no Campo de Marte. O percurso é longo, mas o passeio é agradável, por baixo da sombra aprazível dos plátanos, no calor de 38 graus do verão romano.

Na caminhada, fui deixando para trás o Castelo de Sant'Ângelo, antigo Mausoléu do imperador Adriano, transformado, como tantas edificações da Roma Antiga, em propriedade da Igreja Católica. Na sua cúpula vê-se o Arcanjo São Miguel, com a espada desembainhada, subjugando o terrível dragão, encarnação do mal e da peste, que assolou Roma, por volta de 590 a. D., na visão que o Papa Gregório I afirma ter visto. Construído no Trastevere, margem direita do Tibre, o Castelo se liga a Roma pela magnífica Ponte de Sant'Ângelo, antiga Ponte Élio (Pons Aelius), edificada por Adriano, cujas estátuas, anjos representando a Paixão de Cristo, são cópias das esculpidas, a pedido do Papa Clemente IX (1600-1669), por Gian Lorenzo Bernini (1598-1680), pintor, arquiteto e escultor responsável pelo projeto arquitetônico e urbanístico de Roma, sob as ordens de Urbano VIII, o papa Barberini (1568-1644).

Castelo e Ponte Sant'Angelo, sobre o rio Tibre, Roma
Depois de passar pelo imponente prédio do Palácio da Justiça, continuei a caminhada até a Ponte Cavour, a poucos passos do meu objetivo, o Mausoléu de Augusto. Para a minha frustração, o sítio ainda se encontrava em obras, devendo tornar-se, em um futuro muito próximo, um espaço muito bonito, agradável e cativante, reestruturado ao lado de um dos maiores monumentos edificados por Otávio Augusto César, a Ara Pacis, o Altar da Paz, inaugurado em 9 a.C., em celebração à conhecida Pax Augusta nas províncias romanas, e em cuja parede lateral direita, quando se olha de frente para o altar, encontra-se o seu testamento político, insculpido em mármore, o Res Gestae.

Museu Ara Pacis, Roma
Nenhuma dessas belezas antigas, que fazem parte da memória de quem estuda e trabalha com os Estudos Clássicos, conseguiu, contudo, superar uma aparente banalidade, pela surpresa revelada aos meus olhos. O hábito de procurar saber o nome das ruas, para poder me situar, herdado de meu pai, carteiro, fez-me descobrir a Via di Ripetta e estremeci como Roma estremeceu na pena do poeta!

Cortando a Ara Pacis e o Mausoléu de Augusto, ao final do Lungotevere Marzio, eis a Via di Ripetta, uma simples rua, que me deu a sensação de estar em casa, na minha Paraíba, após sete meses de ausência. É assim que, no espaço do imperador Augusto, de repente, aparece o nosso grande Augusto dos Anjos. Sim, Augusto dos Anjos, em plena Roma dos Césares, despertando em mim interesse
Via di Ripetta
maior do que as obras do César mais famoso, à exceção do Júlio, seu tio-avô e pai adotivo, que lhe legou a herança pecuniária e política.

Explico-me, embora para o leitor de Augusto dos Anjos a referência seja muito clara. A Via di Ripetta torna-se, no Poema Negro, a “estrada da Ripetta”. Na aflição e desconforto, que lhe são peculiares, o eu-lírico de Augusto dos Anjos imerge em visões e delírios, a princípio mórbidos. Dando sequência às questões retóricas formuladas, que, por serem retóricas, não deixam de ser inquietantes, o eu-lírico vê-se sujeito a duas visões diferentes, ambas ligadas à morte. Na primeira, surpreende-se, “sozinho, numa cova” (estrofe 6, verso 31), arrancando “os cadáveres das lousas” (estrofe 5, verso 25) e lutando contra a Morte, que “levanta contra” si “grandes cutelos/e as baionetas dos dragões antigos” (estrofe 6, versos 34-36). Óbvio que, para além da literalidade, impõe-se a literariedade, refletindo as angústias de quem lida com os mistérios da vida e da morte, entendendo que não há como escapar de um ciclo, que metaforicamente se renova a cada início de ano, na figura da “faminta e atra mulher que, a 1 de janeiro,/sai para assassinar o mundo inteiro,/ e o mundo inteiro não lhe mata a fome” (estrofe 4, versos 22-24). Daí, a visão de luta contra a Morte, com um propósito de vingança.

Na segunda visão, o eu-lírico vê-se em Roma, numa Sexta-Feira da Paixão (estrofe 12, versos 67-72):

Súbito outra visão negra me espanta! Estou em Roma. É Sexta-Feira Santa. A treva invade o obscuro orbe terrestre. No Vaticano, em grupos prosternados, Com as longas fardas rubras, os soldados Guardam o corpo do Divino Mestre.

Diferentemente do grande movimento por mim registrado, a Ripetta de Augusto, que inexistia no tempo do outro Augusto, o Otávio César, estava vazia, em decorrência de um recolhimento natural, por causa da morte de Cristo, ouvindo-se apenas o característico “barulho das matracas” (estrofe 14, versos 79-84):

Não há ninguém na estrada da Ripetta. Dentro da Igreja de S. Pedro, quieta, As luzes funerais arquejam, fracas... O vento entoa cânticos de morte. Roma estremece! Além, num rumor forte, Recomeça o barulho das matracas.

De repente, no silêncio profundo que anuncia a morte de Jesus, e tendo chegado ao paroxismo do delírio, o eu-lírico, numa explosão de certeza, ditada pelo estado de desdobramento em que se encontra, vê mais do que a morte. Ele compreende que não é a morte que se deve cultuar, incessantemente, ano a ano, por aqueles que não entenderam a mensagem do Cristo,
Via di Ripetta, no sentido da Piazza del Popolo
mas a grande mensagem da Vida, nele existente, como essência, como o Pão da Vida, anunciando que veio para que todos tenham Vida e a tenham mais abundantemente.

Percebendo esse sentido maior, o eu-lírico declara enfaticamente que Jesus não morreu, e traslada a sua mensagem de Vida para a Serra da Borborema, para o ar de sua/nossa terra, na percepção do panteísmo e da integração de todas as coisas e todos os seres. Entende-se, pois, que as visões, os delírios, “a desagregação da Ideia” (estrofe 15, verso 85), sejam, a princípio, mórbidas, mas apenas a princípio. Na realidade, as visões são necessárias expressões da inquietude do espírito, para que a percepção da espiritualidade seja reconhecida, como ocorre em outros poemas.

No despertar e na racionalidade da fabricação do poema, pois não há dúvidas de que o eu-lírico seja poeta (estofe 20, versos 115 e 120), resta a sensação do vazio, do desmoronamento, após “a agonia de tantos pesadelos” (estrofe 17, verso 97). O eu-lírico, como tantos outros seres humanos, tendo vivido uma soporífera vida vazia, tem a oportunidade de perceber o adormecimento sepulcral e impassível, representado na sala e na mobília, levando ao desmoronamento do mundo, a que ele assiste, triste e em lágrimas, talvez não por ele, mas pelos que ainda não tiveram o despertamento e vivem a vida na letargia (estrofe 18, verso 103):

“Dorme a casa. O céu dorme. A árvore dorme.”
roma ara pacis augusto anjos
M. Marques Jr
A semente do Cristo panteístico, contudo, está plantada. O eu-lírico compreendeu que o Cristo não é o esqueleto que a Igreja fez dele, mas uma essência criadora que existe na Natureza e com ela se mistura. O poema se constrói no confronto entre um mundo material em desmoronamento, que acredita em um Jesus morto, transformado pela Igreja em uma magrém de ossos, e a espiritualidade que sabe estar Jesus vivo, na sua essência de espírito, que jamais se contamina. Eis a vingança prometida à Morte, como Natureza de todo ser vivente: ao descobrir-se o Cristo vivo, descobre-se que a Morte é apenas um estágio da Vida. Esta, sim, permanece (estrofe 16, versos 91-96):

Não! Jesus não morreu! Vive na serra Da Borborema, no ar de minha terra, Na molécula e no átomo... Resume A espiritualidade da matéria E ele é que embala o corpo da miséria E faz da cloaca uma urna de perfume.

A Via di Ripetta é uma longa rua que inicia na Piazza del Popolo e segue até perto da Piazza Navona. Antes de atingir a Navona, pode-se pegar uma via à direita, para acessar o lungotevere Tor di Nona e daí, passando pela Ponte Sant'Ângelo, chegar à Praça São Pedro, pela Via della Conciliazione. Aos nossos olhos, trata-se de uma via de procissão, tendo em vista que na Ripetta se encontra a Igreja de Santa Maria da Porta do Paraíso,
roma ara pacis augusto anjos
M. Marques Jr
em cujo frontispício existe uma inscrição exaltando a Santa pela liberação da peste, em Roma, no ano de 1703. Desse modo, a inclusão da “estrada de Ripetta”, no Poema Negro, não é apenas uma referência morta, que Augusto dos Anjos faz a uma rua, mas algo essencial ao poema, por ser uma via importante, em que, no mármore e na pedra calcária, comemora-se a vida, não a morte.

Não há razões outras para mim, que me expliquem o fato de que uma simples placa de rua — Via di Ripetta —, na turbulenta Roma do presente, com trânsito ainda mais caótico do que o normal, por causa das obras de construção da Linha C do Metrô, pudesse me fazer esquecer a grandiosidade imperial que se testemunha em cada pedra, em cada fachada, em cada esquina e em cada ruína, ao longo desta cidade que foi Caput Mundi. A razão é que se o outro Augusto está encarcerado eternamente nas grades do seu Mausoléu, ainda que a reforma do espaço e a restauração do monumento prometam entregar uma obra grandiosa, como pedem o personagem e a cidade que o encerra, o nosso Augusto dos Anjos, está vivo, muito vivo, e assim continuará, perpetuamente, em cada verso que já fez no mundo.

É desse modo que, aos meus olhos, Roma se firma como a cidade Augusta... de Augusto, o dos Anjos.

roma ara pacis augusto anjos

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  1. Anônimo1/7/24 12:42

    Bravo, caro Milton. Que viveu quatro anos em Roma e fez de tudo por Augusto dos na APL , deliciou-se

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